domingo

Então vamos lá...prepare os ouvidinhos,que hoje é dia!!!

Tarde de domingo, antes de sair, sentada no meu quarto, o olhar perdido na tela do computador. No mesmo, toca Maria Callas canta Andréa Chénier, na tentativa de sua voz me trazer alguma inspiração, para digitar.
Lembro, de repente, de uma frase que ela disse, quando foi abandonada por Onassis.
Ela disse que agradecia quando um dia terminava, porque era um dia de menos.
Alguma coisa assim. Lembro que era triste. Muito triste.
Um amor tão publicamente confesso deixado sobre o banco, como um embrulho esquecido.

(É melhor eu começar outra vez.)

Tarde de domingo, antes de ir para o teatro. Os olhos que saem janela afora à cata de um motivo, que voam sobre a tarde quente e ensolarada.
Uma tarde que me traz a lembrança da minha infância...do meu avô (penso que nunca falei nome dele é José Bittencourt. Viu? E eu disse É e não era).
O céu de Nilópolis incendiado no verão.
Imóvel, a paisagem da memória.
Imóveis todos aqueles dias, como se cada uma das pipas tivesse sido cuidadosamente pintada nos céus.
Éramos crianças suadas, emporcalhadas e felizes.
Uma boa fatia da infância - bicicletas, sótãos, festas e um bando alegre e barulhento.
Tudo sempre foi motivo de celebração naquela família meio italiana.
Vozes que começavam a cantar e a casa que se enchia de sons e risos.
Outro dia passei pela casa de uma amiguinha de infância, que com muito custo e insistência minha, meu avô deixava eu brincar, ou melhor, pelo terreno que lá está, transformado num estacionamento.
A casa foi demolida.
Toda a beleza de sua arquitetura esparramada de varandas imperiais desapareceu.
Restaram os risos e vozes bailando no céu de pipas pintadas.


Maria está cantando Verdi, agora, e a trilha sonora me tira do céu de Nilópolis e me joga em outro lugar, o ar tão cristalino quanto a voz que brota do meu cd.
Maria canta com o coração ferido e a tristeza daquelas notas me faz suspirar e pousar as mãos sobre o teclado.


(É melhor começar outra vez. A voz dela está impedindo o fluxo do meu pensamento. Fragmentos de sua história acabam se infiltrando na minha. Coisas que eu li, instantâneos de sua personalidade, a sua história tantas vezes contada, a diva que se deixou morrer por amor. Como me fascina as tragédia dos amores desesperançados e histórias de divas, eu vou pensando, misturando tudo no cadinho da mente. Vou começar outra vez.)


Tarde de domingo, uma tarde abafada. Maria Callas canta "Madame Butterfly" e todo o amor que uma mulher é capaz de oferecer se derrama pela sua voz.
Com a tranqüilidade da coleta.
Com a serenidade da escolha.
As mulheres são infinitamente mais intensas na entrega e no amor.
Assim é a voz que me embala, nesta tarde de domingo: a delicadeza e a fragilidade do soprano acabam em torrentes de fúria e paixão.
Eu vi Callas no livro, numa de suas últimas fotos, roubada por uma câmera indiscreta: ela está na janela de seu apartamento, em Paris, olhando para o vazio.
O olhar já tinha ficado para trás, ela já tinha partido, eu acredito.
Porque partimos, às vezes, antes de os corpos físicos pararem.
Partimos e vamos em busca daquela fatia de tempo em que as coisas tinham um colorido mais vivo.
E ficamos por lá, corações e almas, mentes cheias de um brilho esperançoso, enquanto nossas carcaças avançam por aqui.
Essa é uma das minhas fantasias góticas.
Zumbis por toda parte.
Corpos abandonados pelas ruas, pelas alcovas, pelas solidões da grande cidade.
Corpos de gente que ficou para trás por escolha, por desejo, por saudade.
Porque há momentos na vida em que a gente tem de ficar para trás.
Simplesmente não se quer mais ir em frente.
São decisões que devem ser respeitadas.
Em que porto terá descido Maria Callas?
Em que porto resolvemos descer e sair em busca daquilo que ficou por realizar?


Agora acabei de escancarar a janela e a tarde vem me chamar dentro do cômodo, estendendo um braço afoita de luz pro meu lado.
Metade da tela do computador ganhou um amarelo brilhante e a voz de Maria Callas ganha uma cor toda especial com o tanto de luz que inunda esse cômodo.
Fico na janela praticando um exercício que alguém me ensinou, um dia: o de olhar além.
O exercício de estender o olhar para além das edificações, além das mágoas e além das tristezas. Vou afastando aquelas casas e vidas e concreto, tentando ganhar outras paisagens, embalada pela voz de Callas.

Bem, fim de tarde de domingo, logo chega o crepúsculo e eu emudeço Maria Callas, porque já são horas!
Jogo uma água no corpo, olho pra minha imagem no espelho e saio de casa na hora em que a luz começa a cair, pintando as montanhas de preto e as árvores ficam de um alaranjado forte (já reparou nisso?).
Vou dirigindo pela dureza da av.Brasil, preguiçosa nesse fim de tarde.
O resto de luz do dia se vai de vez.
Estou indo ao teatro mergulhar no mundo dos atores.
As histórias cotidianas, os seus e os nossos sonhos loucos, as gargalhadas teatrais, as vozes que se elevam numa gritaria alegre, para depois irem se aquietando, silenciando, os olhares concentrados no trabalho, no ofício.
São oito da noite.
Estou dentro do teatro, sentada e totalmente desarmada de expectativa, apenas um segundo, antes de dar início à peça.
Aquela tarde quente resolveu se desmanchar em chuva e, no teatro, eu posso escutar o aguaceiro que despenca sobre a cidade.

Respiro fundo, olho para o fundo escuro, penso em Callas e na vida dos atores que decidem viver uma vida que não é a deles.

E é assim que estou me sentindo...

Vivendo uma vida que não é minha.

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